Felicidade é algo frágil, tanto quanto o sabor exato do
prato preferido. Tratando-se de paladar, individualidade é a grande chef. Os ingredientes proibidos e os indispensáveis,
as escolhas. A gente quer acreditar nas receitas que vão agradar a todos, que a
pizza é universal e o chocolate é irrecusável, mas o prazer de cada pedaço é um
momento particular, impossível de ser regulamentado.O toque certo de sal e de azedo. O doce muito doce ou o doce
nem tão doce assim. A pimenta que para uns é trágica e para outros é mágica. E
o amargo.
Ah, o amargo.. como é
forte. Estraga o doce e o salgado;
potencializa o azedo; é bombástico com o picante. Basta um pouco, bem pouco
dele e todo o ponto certo da comida certa se dissolve. Tem amargo que o doce não adoça, que o sal só
piora e que o azedo amarga junto. O amargo é aquele sabor que parece não nascer
espontaneamente. Quanto mais amargo, mais tempo de conserva – dizem que vinho
doce é vinho jovem, com pouca fermentação. Mas o amargo mais forte é o amargo
da boca e dos sentimentos. Não tem doçura que cure, água que dilua e
combinações que amenizem. O amargo da boca nasce fundo e é cuspido.
É inevitável conviver com os sabores da vida, principalmente
com aqueles longe de serem os favoritos.
A qualquer momento, ela fornece ingredientes inimagináveis que requerem técnicas
e gostos que não temos.
Às vezes, vomitar é inevitável – nem sempre nos
adaptamos a um sabor logo assim, de primeira.
A doçura tem seu quê de elegância e sutileza, dificilmente
invade. A gente sabe que doce de leite é
bem doce, então escolhe ou não
provar, sabe dosar mais ou menos a quantidade
tolerável. A preferência por ela às vezes
também se afeta com o tempo; crianças e
jovens geralmente optam mais por docinhos. Há quem goste de neutralizar o doce
com algum azedo porque doce demais enjoa, cansa; há quem goste de neutralizar o
azedo constante com algum doce. Nem todo
mundo tolera doce, nem todo mundo pode ter doce, mas todo mundo escolhe o doce.
Poucos doces têm tanto poder de adoçar
quanto aqueles que saem pelos olhos e pela boca porque eles nascem fundo
também. A gratidão, o respeito, o carinho, o amor e o sorriso estão na boca e
estão nos olhos, mas se formaram bem antes, lá na especialidade que algumas
pessoas têm de botarem açúcar até nos abacaxis e nos limões que a vida deu.
E Dizem que o sal cura tudo na vida – as lágrimas, o suor e
o mar. Discordo. Quantas lágrimas e quanto suor são amargos. Quantas lágrimas e
quanto suor são bem docinhos. Quanto choro de alegria contamina com doçura quem
está perto e quanto choro de amargura para na garganta e só sai pelo
pensamento, pela frieza, pelo rancor gritado. Até o mar. Embora tenha tanto sal
e tenha uma beleza doce demais, já foi
amargo pra muita gente. Ele pode até não ser remédio cura-tudo, mas é tempero
indispensável, é sabor que neutraliza. É ele que sobe a pressão quando a gente
sente aquele mal estar.
Há quem faça do azedo um estilo de vida. Que aproveita o
limão dado e já compra logo um saco de 20kg para passar o mês. Que acha que
toda comida e bebida deve ser azeda porque um dia ele teve de usar aquele
limão. E que defende a obrigatoriedade de todos adotarem o azedume em seu
cotidiano porque ele se recusa a adoçar seus limões. Mas há quem faça do azedo
um tempero, um gostinho leve, só para enriquecer o paladar.
Das dificuldades que a cozinha do cotidiano dá, poucas são tão
difíceis quanto provar a comida que o outro tem a oferecer. Às vezes a gente
quer provar pão de mel de quem só tem limão com sal na despensa. Outras vezes,
queremos oferecer suco de manga a quem só bebe destilado. Exigir do cozinheiro
ao lado um prato que não está ao seu alcance ou um paladar favorável ao que
podemos oferecer – receita pronta da frustração.
Se há algo a ser aprendido dia após dia, esse algo é a arte
de ser chef da própria vida. É saber limpar um peixe, é entender que
acrescentar a água aos poucos muda a forma de cozimento, é aceitar que jiló
será obrigatório algumas vezes e em
outras, o único ingrediente. Quando somos chefs, somos soberanos com a nossa
alimentação ao invés de exigir que o outro cozinhe por nós. E sabemos que métodos
diferentes dos nossos podem ser usados. E que, embora paladares sejam únicos, o tempero
é fundamental .
Não há comida que agrade a todos, mas uma comida sem tempero é unânime: não agrada ninguém. Nem o cozinheiro.